0 Crescimento para Baixo – J. I. Packer
A vida de santidade é
uma vida de crescimento para baixo o tempo todo. Quando o apóstolo Pedro
escreve: "Antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo" (2Pe 3.18), e Paulo fala de crescer em Cristo (Ef
4.15) e alegra-se com o crescimento da fé dos tessalonicenses (2Ts 1.3), o alvo
de ambos é um progresso na direção da pequenez pessoal, que permite que a
grandeza de Cristo apareça. O sinal deste tipo de progresso é que as pessoas se
sintam e digam cada vez mais que nada são e que Deus, em Cristo, tornou-se tudo
de que precisam para levar a vida adiante. É dentro desta estrutura, desta
contínua diminuição do nosso ego carnal, como podemos chamá-la, que enquadra-se
a tese deste capítulo.
O que pretendo discutir
é que os cristãos são chamados a uma vida de contínuo arrependimento, como uma
disciplina integral para uma vida santa saudável. A primeira das noventa e
cinco teses de Lutero, fixadas na porta da Igreja de Wittenberg em 1517,
declarava: "Quando nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo disse:
'Arrependei-vos' (Mt 4.17), ele queria que a vida toda dos cristãos fosse
marcada pelo arrependimento". O puritano Philip Henry, que morreu em 1696,
respondeu à insinuação de que enfatizara o arrependimento em demasia, afirmando
que esperava carregar o seu próprio arrependimento até às portas do céu. Estas
duas citações indicam a compreensão que estamos sintonizando no momento.
Aqui onde moro, na
província de British Columbia, onde as chuvas são fortes, as estradas onde o
sistema de drenagem de água falha logo ficam inundadas e intransitáveis. O
arrependimento, como veremos, é a drenagem rotineira da estrada da santidade na
qual Deus nos chama a todos a trilhar. É o caminho que tomamos na nossa vida
que é oposto àquele que mostrou-se cheio de água suja, parada, e cheio de
detritos. Esta rotina é uma necessidade vital, pois onde não há o verdadeiro
arrependimento, não há o verdadeiro progresso espiritual, e o verdadeiro
crescimento espiritual fica estagnado.
Em falando de contínuo
arrependimento, não quero deixar a impressão de que o arrependimento pode
tornar-se algo automático e mecânico, como o são nossas regras de etiqueta à mesa
e hábitos para dirigir um carro. Isto não pode acontecer.
Cada gesto de
arrependimento é uma ação separada e um esforço moral distinto, talvez algo que
exija um alto preço. Arrepender-se nunca é agradável. Sempre, de diversas
formas, é um gesto que causa dor, e continuará sendo enquanto vivermos. De modo
algum, quando falo de arrependimento contínuo, tenho em mente formar e manter
um hábito consciente de arrependimento tão freqüente quanto a nossa necessidade
- embora isto, sem dúvida, signifique (vamos encarar os fatos) uma prática
diária na nossa vida. É a sabedoria de igrejas que usam liturgias de modo a
fornecer orações de penitência para serem usadas em todos os cultos. Essas
orações sempre caem como uma luva. Em nossos momentos particulares de devoção,
as orações de penitência diárias sempre serão uma necessidade também.
Pouco se fala nesses
dias sobre a disciplina do arrependimento contínuo. É visível que os escritores
sobre as disciplinas espirituais não têm tratado deste assunto, e o Dictionary ofChristian
Spirituality (Dicionário da Espiritualidade Cristã) padrão, publicado agora nos
Estados Unidos como o Westminster Dictionary (Dicionário de Westminster), não
faz menção do assunto. No entanto, trata-se de uma lição básica que deve ser
aprendida na escola da santidade de Cristo. Como já foi dito, o tema é vital
para a saúde espiritual. Portanto, vamos tentar entendê-lo melhor.
O QUE É ARREPENDIMENTO?
O que é arrependimento?
O que significa arrepender-se?
O termo é pessoal e
relacionai. Implica em voltar ao que se estava fazendo antes, e renunciar ao
mau comportamento pelo qual a vida e os relacionamentos estavam sendo
prejudicados. Na Bíblia, arrependimento é um termo teológico que indica um
abandono daquelas atitudes que afrontam Deus envolvendo-se no que ele odeia e
proíbe. O termo no hebraico para arrependimento significa desviar-se, ou
retornar. O termo correspondente no grego tem o sentido de mudança de mente de
modo a mudar os caminhos também. Arrependimento significa mudar hábitos de pensamento,
atitudes, ponto de vista, política, direção e comportamento na medida certa
para deixar de lado o caminho errado e seguir o caminho certo. Arrependimento
é, na verdade, uma revolução espiritual. Esta, agora, nada mais é do que a
realidade humana que iremos explorar.
O arrependimento, no
sentido pleno da palavra - mudar de fato o caminho descrito - só é possível
para os cristãos que foram libertos do domínio do pecado e vivificados para
Deus. Arrependimento, neste sentido, é um fruto da fé e, como tal, um dom de
Deus (cf. At 11.18). O processo pode ser aliterativamente analisado sob os
seguintes tópicos:
1. Reconhecimento real de que se desobedeceu
e falhou para com Deus, fazendo o que era errado em vez do que era certo. Isto
parece mais fácil do que realmente é. T. S. Eliot disse uma verdade quando fez
a seguinte observação: "A humanidade não consegue suportar a
realidade". Não existe nada como uma sensação sombria de culpa no coração
para nos levar, de uma maneira apaixonada, a fazer o jogo de fingir que nada
aconteceu, ou nos imaginar fazendo algo que seja moralmente reprovável. Assim,
após cometer adultério com Bate-Seba e completar a ação com o assassinato do
marido dela, Davi disse para si mesmo que era simplesmente uma questão de
privilégio real e que, portanto, nada tinha a ver com sua vida espiritual.
Assim, Davi tirou aquilo da cabeça, até que a repreensão do profeta Natã
"Tu és o homem!" (2Sm 12.7) fê-lo perceber, por fim, que ele havia
ofendido a Deus. Esta consciência foi, e é, a semente que germina o
arrependimento. Ela não cresce em outro lugar. O verdadeiro arrependimento só
começa quando a pessoa transpõe o que a Bíblia vê como auto-engano (cf. Tg
1.22, 26; 1Jo 1.8) e o que os especialistas modernos chamam de negação, para o
que a Bíblia chama de convicção do pecado (Jo 16.8).
2. Profundo remorso pela desonra causada ao
Deus que se está aprendendo a amar e desejando servir. Esta é a marca do
coração contrito (SI 51.17; Is 57.15). A Idade Média fez uma distinção
proveitosa entre atrição e contrição (a primeira significa arrepender-se do
pecado motivado por medo de si mesmo e por amor a Deus respectivamente; a
segunda leva ao verdadeiro arrependimento, enquanto a primeira não consegue
fazê-lo). O cristão sente não apnas atrição, mas contrição, como aconteceu com
Davi (SI 51.1-4, 15-17). O remorso contrito, que brota de um sentimento de ter
insultado a bondade e o amor de Deus, é descrito e exemplificado na História de
Jesus sobre o retorno do filho pródigo à casa do pai (Lc 15.17-20).
3. Pedido reverente pelo perdão divino,
purificação da consciência e ajuda para não falhar na mesma área novamente. Um
exemplo clássico des¬se pedido encontra-se na oração de penitência de Davi (SI
51.7-12). O arrependimento do cristão sempre, e necessariamente, inclui o
exercício da fé em Deus para obter estas bênçãos de restauração. O próprio
Jesus ensina qual deve ser a oração dos filhos de Deus: "Perdoa-nos os
nossos pecados (...) E não nos deixes cair em tentação" (Lc 11.4).
4. Resoluta renúncia
dos pecados em questão, com pensamentos deliberados sobre como manter-se limpo
deles e viver corretamente no futuro. Quando João Batista disse para a elite
religiosa oficial de Israel: "Produzi, pois, frutos dignos de
arrependimento" (Mt 3.8), ele estava chamando seus membros a uma mudança
de direção.
5. Restituição
necessária à qualquer pessoa que tenha sofrido perdas materiais em virtude dos
erros cometidos. A lei do Antigo Testamento, nestas circunstâncias, exigia a
restituição. Quando Zaqueu, o judeu renegado por ser cobrador de impostos,
tornou-se um dos discípulos de Jesus, ele comprometeu-se em retribuir quatro
vezes mais cada ato de extorsão que tivesse praticado, ao que parece no modelo
das exigências de Moisés de quatro ovelhas para cada uma roubada ou tirada de
seu dono (Êx 22.1; cf. Êx 22.2-14; Lv 6.4; Nm 5.7).
Uma aliteração
alternativa (como se uma não fosse suficiente!) seria:
1. discernir a perversidade, insensatez e
culpa no que se fez;
2. desejar o perdão, abandonar o pecado e
viver uma vida que agrada a Deus daqui em diante;
3. decidir pedir perdão e poder para mudar;
4. dirigir-se a Deus da maneira devida;
5. demonstrar, ou pelo testemunho e
confissão, ou pelo comportamento transformado, que o pecado cometido ficou para
trás.
Esse é o arrependimento
- não apenas o primeiro arrependimento que ocorre na conversão de um adulto,
mas o arrependimento recorrente do discípulo adulto - que é o nosso tema aqui.
J. I. Packer
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